Oscar Niemeyer, Ruínas de Brasília, 1964, óleo s/ tela, 46 x 77 cm (Reprodução)
O 8 de janeiro de 2023 foi impresso na história do Brasil de modo escatológico. Vimos a ocupação da praça dos Três Poderes em Brasília, a invasão dos três prédios que abrigam e representam o governo da República, a destruição de lugar, objeto, imagem, arquitetura, ícone e símbolo. Tudo isso ganhou, diante de nossos olhos, a forma incomum de um magma de corpos, vozes e atos em frenesi. Tentativa de destruição do outro e do Outro.
Sua tradução segue esburacada: um real sem bordas irrompeu no que se concebia, antes, como diversidade ideológica ou de narrativa. O gozo–cuja imagem correu na TV e na Internet–mostrou-se isento de laço social.
Que outro tipo de resto está em curso agora, no já-depois?
Pode-se perguntar outra vez: em que tudo isso concerne à psicanálise, aos psicanalistas, a uma Escola de Psicanálise? Para tornar a responder: em tudo e por tudo. Em primeiro lugar, pelo reconhecimento da necessidade de um Estado Democrático de Direito como condição para o exercício da psicanálise. Em segundo lugar, porque, desde Freud em seu premonitório estudo Psicologia de massas e análise do eu, a psicanálise pode e deve trabalhar na leitura desses fenômenos de massa e, sim, reconhecer o que adoece as massas. Em Psicologia de massas, Freud fazia psicanálise e não outra coisa.
Talvez devamos partir disto: fascismo é uma possibilidade recorrente da vida coletiva dos falantes. O fenômeno da crença, na base dos fenômenos fascistas, é também uma possibilidade na estruturação da vida humana. Na crença fascista, não há lugar para o saber em falta; esta crença conduz os seus ao fanatismo ideológico e à fascinação pelo líder. Entre a servidão apaixonada e o ódio destrutivo, assistimos ao retorno à obscenidade da barbárie que fez emergir o esgoto da civilização.
E há o gozo desregrado e disruptivo que é um efeito de discurso, ou seja, o laço social ensejado pelo discurso capitalista faz um chamamento a um gozo desmedido. A ordem coletiva disseminada pelas redes sociais convida e incrementa realidades paralelas. Lembrando que o que chamamos de realidade é, ela própria, uma produção do laço social. Assim, essas distopias autoritárias, essas disfunções cognitivas a que, pasmos, assistimos hoje na cena social brasileira, são efeito de certas distorções históricas produzidas, em grande medida, por alguns que têm conhecimento dessa estrutura do laço social. E jogam com ela. Não se trata de um fenômeno “natural” ou espontâneo (teria sido espontâneo no início dos anos 1930, no alvorecer do nazismo alemão?), trata-se hoje do efeito de uma ferrenha disputa pelo controle social através de um saber sobre a psicologia de massas.
É mesmo por isso que somos concernidos por esse debate crucial. E porque já sabemos no que resultou a anistia pós-ditadura no Brasil. Para não repetir o erro cometido no passado, afirmamos a importância de investigar os fatos ocorridos, a fim de construir uma narrativa comprometida com a verdade, que permita julgar e responsabilizar todos aqueles que participaram desses atos criminosos.
Diante disso, o Aleph – Escola de Psicanálise vem mais uma vez a público se somar ao grito de “sem anistia!”, colocando-se na defesa radical da ainda frágil democracia brasileira. Para que seja feita essa escrita. Para que não se esqueça. Para que seja sempre lembrado.
Comissão de Direção do Aleph–Escola de Psicanálise
com a participação dos colegas Elisa Arreguy, Grace Simões,
Joaquim Lavarini e José Eugênio Gomes