BH, 11/03/2020
Caros Colegas,
A Comissão da XXV Jornada do Aleph: “A sombra do Trauma e a Identificação” prossegue nas Cartas ao Outro, sob a forma de resenhas de textos de colegas publicados em Transfinitos.
“O TRAÇO E A IDENTIFICAÇÃO ENTRE OS ANALISTAS”
Maria Inês Lodi- Transfinitos ano2-n.01-2000 “Identificação e Angústia”.
O conceito de traço, forjado por Freud e lido por Lacan é fundamental para elaborar e formalizar a experiência do analista com a Psicanálise.
– O que se apura dessa experiência? Apura-se o estilo, que concerne à clínica, à transmissão e o modo de trabalho que agrega os analistas. Além disso, pode-se colher, em outros campos de trabalho, os efeitos do “tornar-se analista”.
A partir do que Freud descreve do sistema mnêmico, o traço mnêmico (erinnerungsspur) é um resto ou resíduo da percepção. As facilitações entre os neurônios e os sinais de percepção se dão a partir de um traço (spur), que vai sustentar a noção de inconsciente. Estão no cerne da psicanálise os fundamentos do inconsciente: os traços de acontecimentos, de cenas vistas e de palavras ouvidas advindas de experiências de satisfação ou de dor. Traços da presença de lembranças que retornam à percepção e determinam as palavras e as formações do inconsciente.
O traço unário (einziger zug) é o que Lacan entende do traço único. No Seminário da Identificação ele nos diz que no princípio era o traço unário, esse puro elemento da diferença que constitui o sujeito. É um traço que nada tem a ver com a identificação amorosa ao pai. Nomeado unário, vai servir de suporte a identificações posteriores, mas não é extraído de uma pessoa amada. Pode ser eleito para o sujeito como base de uma identificação parcial, muito limitada, cuja pessoa-objeto lhe seja indiferente do ponto de vista do amor.
É essa singularidade do traço unário que entra no real. Então, a identificação ao traço unário é a matriz fundadora de todas as identificações e suporte do desejo.
Deriva-se disso três pontos:
1) Há uma relação entre o traço unário e o significante, já que ambos manifestam a diferença. Ou melhor, o significante é a encarnação do traço unário e implica que a relação do sujeito com a coisa esteja apagada. O traço é que apaga o essencial da coisa. É o apego da linguagem ao real.
2) Há um significante especial, recortado, reduzido e intraduzível que especifica o enraizamento do sujeito e que recebe a informação do traço unário: é o nome próprio. Então, nomear é algo que tem a ver com a leitura do traço, de Um traço;- esse que faz designar a diferença absoluta. Há uma afinidade do nome próprio com a marca. A marca é a designação direta do significante com o objeto- é a marca que denuncia o nascimento do significante, a partir do que ele é o signo.
3) A identificação do sujeito, sustentada no traço unário como elemento da diferença, ao passar a significante aliena o sujeito no campo do Outro;- esse Outro que porta os significantes, É do Outro que se trata no Inconsciente, o Outro do significante puxa os cordéis do que é chamado sujeito. O sujeito depende do Outro e o que está na mira dessa identificação é o Outro. Temos que dar conta de que há de um entre os outros.
A identificação é a forma mais primitiva de ligação com o objeto. O objeto ausente é substituído por um traço mínimo, por isso dizer que o traço unário é o significante de uma ausência, e não de uma presença. Esta é uma operação da estrutura. Embora possa se prestar a uma função unificadora, o que ela tem, de fato, é uma função distintiva. É com a marca apagada que o sujeito cerca o lugar. O passo é negativizado (pas) e transformado em pas de trace, não há marca.
Lacan desenvolve essa questão propondo uma versão lógica da função do 1. Ele vai a Kant, em “Crítica da razão pura” buscar a versão universal da função de síntese do Um, mas o Um na identificação, tal como postula a experiência freudiana: a do traço unário (e não a do Einheit, que faz o agrupamento do Um que coletiviza). É o Um depurado de seus apêndices, simplificado: simplesmente 1. O paradoxo é que, esse 1, quanto mais ele reúne, mais encarna a diferença como tal. Há uma passagem do Einheit para o Einzigkeit (unidade distintiva) que exige uma passagem pela exceção.
Quando Kant isola o juízo particular para mostrar suas afinidades com o juízo universal, ele já anuncia uma centelha da inversão lacaniana em que o juízo singular tem sua independência. O conceito é do Um depurado. A negação não é linguisticamente zero, mas é “não-um”.
Essa inversão lógica tem a ver com o desejo e com a fronteira que separa o desejo do amor. Isso fica claro se evocamos a questão do narcisismo na identificação. Deseja-se o que falta. O sujeito do desejo não é o sujeito do amor pela simples razão que o sujeito é vítima do amor, o que é totalmente diferente. Se o desejo diz do Um é porque anuncia a falta, a ausência, disso que é mais peculiar ao sujeito: mais interior e mais exterior.
Quando os analistas se reúnem sob uma ética que não se engana com o Um unificador, operam com um desejo fundado sobre a identificação ao traço unário. Pois é do não-todo que provém o analista. É isso que está na Nota Italiana. Lacan pergunta: – Como se articular a função do sujeito além desses polos que são os efeitos idealizantes da função significante e a imanência vital?
Fazer vigorar o cartel como órgão de base faz emergir um traço distintivo. No cartel há um cálculo para que cada um se distinga dos demais. E o nome próprio, ausente de sentido, é menos aberto á comunicação com outros objetos. É o ponto nevrálgico da experiência com a transmissão da psicanálise em torno do buraco da falta. Ponto minimal do objeto a e do desejo. Nesse traço, está a força suficiente e necessária para suportar a invenção de um saber.
Sílvia Myssior
Lacan, Seminário da Identificação (1961-62). Lições: 6/12/62; 10/01/62; 21/2/62.
Lacan: Nota Italiana (1973)
Lacan: L’Insu qui sait d’ une Bévue.. ( Inédito)