BH, 08/10/2020
“Os pauzinhos da identificação”
“Os pauzinhos da identificação”
Françoise Samson
Tradução de Lélia Márcia Dias
[Transfinitos – Colóquio: a escrita na Psicanálise: volume 2, 2007]
Resenha (ou: o que escrevo na leitura do escrito de Samson)
O texto de Samson pode ser tomado como um dos roteiros possíveis de trabalho em torno do seminário IX de Lacan (1961-1962), A identificação. Mas pode ser tomado, também, como as escolhas que fez, os significantes com que se identificou, e como foi, a própria autora, escrevendo-se. Samson inicia seu texto costurando escritos, imagens e vozes do Outro: um grande cartaz publicitário, visto no metrô de Paris; uma passagem bíblica sobre as vicissitudes do nome de Deus; a fala de um analisante, explicitando modos contemporâneos de identificação.
Encontramos, em um best seller atual – SAPIENS Uma breve história da humanidade, de Yuval N. Harari –, uma documentada argumentação acerca da mais bem sucedida religião, em seu ponto de vista: o credo capitalista. Não à toa, o primeiro parágrafo de Samson nos mostra uma apropriação mercantilista de um versículo da Bíblia judaico-cristã (em Exodus, 3:14), que desconsertou pesquisadores e exegetas de variados campos e epistemes, confundiu tradutores e interessou a Lacan.
Na tradição judaica, o verbo utilizado naquele versículo é equivalente ao nosso verbo “ser”, mas jamais é conjugado no presente, o que resulta no seguinte efeito: a frase permanece sempre em um tempo inacabado da conjugação. Para essa tradição, o nome que prevaleceu é uma redução máxima de frase e de sintaxe que resultou no tetragrama sem vogais YHVH, impronunciável. Já para a tradição cristã, há várias versões para aquela passagem, como “Eu sou aquele que sou” mas também a que se faz no futuro: “Eu sou aquele que será” ou “Eu serei o que serei”. Lacan é atraído pelas torções produzidas nas variadas versões da tradição greco-cristã, pelo fato de ver aí a introdução do “ser” na questão do nome de Deus. E disso se ocupará, a seu modo, para tratar a ontologização desse nome e o que disso interessa à psicanálise.
A peça publicitária de uma grande multinacional escreve, então, a mesma frase que inicia o texto de Samson, em uma língua pragmática e universalizada nos dias de hoje: I am what I am. E a primeira nota do texto (nota da própria autora) nos esclarece que “Havia também uma tradução imperfeita em francês embaixo do cartaz: ‘Sou como sou’”.
O que teria religião, capitalismo, publicidade e o sujeito a ver com a Identificação? Lacan não se furtou ao trabalho de pensar sobre esses temas, em várias passagens de sua obra. Indicou-nos, por exemplo, as relações entre a “mais-valia” – desvendada por Marx em sua crítica fundamental às contradições internas do capitalismo – e o “mais-de-gozar” do funcionamento psíquico – economia de gozo – do ser falante (parlêtre). E, quanto à religião, procurou, decididamente, distingui-la da psicanálise, particularmente em um momento de seu ensino em que a experiência da psicanálise encaminhava-se na direção da vacuidade do ser e para o esvaziamento de sentido, enquanto a experiência da religião sempre fora alicerçada na revelação de uma verdade última, na crença no ser e no sentido, a fim de fazer funcionar a existência e a civilização. A propaganda de que parte o texto de Samson não se engana. Ela se dirige aos milhões de consumidores, fervorosos crentes naquilo que pensam ser, na imagem de si mesmos, com que se regozijam e que pensam poder transmitir.
Encontramo-nos, repentinamente, em um turbilhão de estratos geológicos e de suportes linguísticos do Outro.
A autora, ancorada ainda na fala de um analisante, entra no terreno de “marca”, “apagamento”, “marca registrada”…, passando à sua própria escrita (dela, a autora), ‘sigla’, ‘selo’, ‘assinatura’, ‘identidade’, ‘papéis’, “sobrenome”: não é tão certo que ela tenha uma identidade, mas “Essa pretensa identidade seria antes um mosaico de identificações, as que eu me fiz ao longo de minha própria história de sujeito”.
Segue relembrando as três identificações descritas por Freud no capítulo VII da Psicologia das Massas e seu embaraço diante do que ela encontra ali. Mas se declara aliviada com a luz lançada por Lacan sobre esta questão, na lição de 20 de junho de 1962 de seu seminário, em que ele nos indica que “…a identificação ao traço unário reúne as três formas de identificação”. E ela acrescenta: o “traço unário” é o cerne e o eixo do trabalho de Lacan naquele ano letivo (1961-1962) e será martelado por ele em todo o seminário.
Samson segue seu escrito apresentando-nos a razão de seu título – “Os pauzinhos da identificação”. Um osso de antílope pré-histórico, marcado com traços entalhados por um caçador primitivo, chama a atenção de Lacan em um museu de Antiguidades, em um momento, naquele ano do seminário, em que sua preocupação era: “como é que funciona um ser humano, um parlêtre?”. Em meio a lembranças de sua (da autora) infância, “…esses pauzinhos que o professor de ensino fundamental faz as crianças copiarem, esse 1, pode ser também ‘o único traço do signo para sempre suficiente da notação mínima (Lacan, no seminário).’ ‘Você teve 1 em francês’, diz o professor anotando em seu caderno aquilo que Freud chamou de einziger Zug. É ainda 1+1, em que o signo + é ‘a marca da subsistência radical da diferença’”, a autora nos diz, ainda, citando outra lição daquele seminário.
Mas aqui já chegamos a um ponto em que uma associação importante pode ser feita, deslocando-nos, aparentemente, do texto de Samson. Mas trata-se apenas de um desvio, para reescrever o escrito de Samson, com nossa própria leitura. O texto segue forte e rigoroso, e nos prende até o seu final. Ainda mais porque, enquanto ela o escreve, ela está também escrevendo-se. Um texto-acontecimento, nos parece.
Harari estabelece algumas datas aproximadas e cruciais de nossa história: “200 mil anos para o surgimento da espécie, Homo sapiens. 70 mil anos para o que ele chama de uma ‘Revolução Cognitiva’; surgimento da linguagem ficcional; começo da história; os sapiens se espalham a partir da África oriental”. Difícil, para nós, experimentar tal escala de tempo, já que a ideia mais antiga de civilização, que povoa nosso imaginário, encontra-se em torno de 7.000 anos atrás.
No entanto, a expressão “linguagem ficcional” chama nossa atenção. Além do começo da ciência histórica, sabemos que foi o começo também da estória. Esse termo, estória, nos interessa de perto, já que lidamos exatamente com isso, todo dia, em nosso trabalho clínico. Mas não o encontrei nos dicionários etimológicos de meu avô (edições da passagem dos séculos XIX para XX), nem nos dicionários de língua portuguesa da mesma época. Ele aparece na 2ª edição brasileira do Caldas Aulete, que é de 1964. Suponho que tenha sido mesmo Guimarães Rosa quem o tenha popularizado em suas diversas ‘estórias’, apoiado, também, no fato de a língua inglesa apresentar ambas as possibilidades, history e story. Penso, então, que a emoção de Lacan, diante dos ossos ancestrais, pré-históricos – com as marquinhas que ele chamou de “o único traço do signo para sempre suficiente da notação mínima” e tendo-o associado ao einziger Zug freudiano –, ajudou-o a encontrar uma estória crível para o significante e para o sujeito; para o sujeito suposto saber e para o S1 do seminário 11; para a topologia do objeto a – conforme escreve Samson.
Esse caminho (associação/desvio) tem, talvez, o selo de uma passagem entre tipos diferentes de signos na história do parlêtre. Em um mundo já habitado por “índices” e “ícones”, traços/marcas/demarcados/apagados têm sua força, uma vez que ligados à possibilidade de serem tomados, agora, também como “símbolos”. O símbolo é o tipo de signo no qual a relação entre o significante e o significado é da ordem de um acordo, de uma convenção ou de um tratado entre seres que partilham a mesma língua. Assunção ao simbólico.
Realiza-se uma passagem dos sinais da natureza e dos primitivos objetos e imagens com alguma função de representação a uma notação mínima suficiente para articular o balbucio de uma outra forma de representação, a da linguagem falada. É nesse ponto que Lacan se interessa pelos “pauzinhos da identificação”, na mesma lição de 06 de dezembro de 1961, em que insiste sem cessar na importância da diferença entre “signo” e “significante”. Também nessa lição, ele nos explica que sua cadela fala, mas ainda em um registro prévio ao do signo linguístico que libera o significante de um laço a priori com o significado – o signo designado por Benveniste como símbolo. Dito de outro modo, é no símbolo, propriamente dito, que as cadeias podem deslizar, uma sobre a outra – com um acento na barra que as separa –, e assim o significante ganha uma função própria, para além dos signos. Somente a dimensão simbólica permite o alcance da constituição de um sujeito (sujeito do inconsciente) para a fala e para a escrita. A cadela não morde um pedacinho de seu universo para fazer disso um laço simbólico. Quanto ao sapiens (parlêtre), ele sim estará destinado a uma coreografia multiforme e infinitizada (ou não) com o pedacinho mordido do Outro: o objeto pequeno a: $˂˃a. Poderíamos dizer que essa é uma versão lacaniana da passagem da natureza à cultura, realizada pelo parlêtre.
Tomando a questão cara a Freud, sobre filogênese/ontogênese, poderíamos nos perguntar: em que ponto, ou em que tempo, a criança faz a passagem de lalangue ao discurso (discurso como laço social, portanto já fazendo parte do jogo de ser representada, como sujeito, por um significante para outro significante)? E em que ponto, em que tempo, a criança faz outra passagem, a do rabisco, puro traço, ao desenho, às figuras e, adiante, à letra, como caractere? Estamos, assim, no cerne do trabalho do parlêtre em duas dimensões essenciais de sua existência: a fala e a escrita.
Voltando a nosso desvio/associação: Maurice Blanchot, evocando um poema de René Char, escreve um texto a que dá o nome A besta de Lascaux. Segundo Cinara de Araújo, poeta ligada a nosso destino:
Em La Bête de Lascaux, um ensaio sobre o surgimento da escrita, Blanchot nos mostra apaixonadamente a claridade única da obra, o encontro com a linguagem literária em sua marca, em seu traço, e sobretudo a firmeza do escrito e do poema para arrebatar a palavra começante. Foi assim com a palavra sagrada, foi assim com o canto do aedos, foi assim com a palavra calada, desenhada, como se estivesse morta: a palavra escrita. A palavra começante é aquela que traz, em seu eterno repisar, a estranheza da língua original. Não a grande origem, mas um acanhado e contínuo começo. Uma palavra que seria capaz de fazer a ligação entre o silêncio que a habita e o exterior que a estanca – uma palavra primeira, única, desconhecida, ausente. [“O ramo do primeiro sol” in Maurice Blanchot, Annablumme, 2004. p. 42]
Eis o poema de Char:
A BESTA INOMINÁVEL
A Besta inominável fecha a marcha da graciosa manada, feito um ciclope bufo.
Oito chistes lhe servem de adorno, dividem-lhe a loucura.
A Besta arrota com devoção no ar rústico.
Seus flancos abarrotados e pendentes doem, vão livrar-se de sua prenhez.
Dos cascos às suas inúteis presas, ela está envolta em fetidez.
Assim me aparece no friso de Lascaux, mãe fantasticamente disfarçada,
A Sabedoria com os olhos cheios de lágrimas.
[BLANCHOT. Uma voz vinda de outro lugar. Rio de Janeiro: Rocco, 2011. p. 51]
[Há farto material escrito e imagens disponíveis na Internet sobre a Gruta de Lascaux]
[Disponível, on-line, neste link, outra versão traduzida do poema de Char e do texto de Blanchot: http://www.revistas.udesc.br/index.php/dapesquisa/article/view/8083/5578 ]
Char escreve seu canto a partir dos traços figurativos (ícones) do friso de Lascaux. O poema, mais do que uma formação do inconsciente, é um acontecimento e uma transposição entre as instâncias psíquicas. Aqui não cabe uma interpretação do acontecimento-poema, mas sua leitura nos torna, a cada vez, também escritores. O inominável do nome (seu ponto de partida): os olhos cheios de lágrimas (seu fechamento, nachträglich): transpassado por mãe disfarçada, a Sabedoria.
A leitura que Lacan faz do pauzinho/traço/marca/rasura/apagamento o inspira na escrita do processo de identificação/constituição do sujeito do inconsciente. O friso de Lascaux transporta o poeta para a escrita do poema. Caminhos paralelos, de certa forma, até um ponto antes do infinito, em que se cruzam.
Eles se cruzam no ponta de letra.
O caminho de Lacan, em torno da letra, vai do suporte para o significante (seminário sobre A Carta Roubada – 1955) à dimensão essencial ao escrito (posfácio ao seminário 11 – 1973), passando pela escrita que faz rasura, mas “rasura de traço nenhum que lhe seja anterior” (Lituraterra – 1971), chegando à letra como fator de gozo. Economia libidinal: parlêtre.
O poeta, às vezes chamado de “homem de letras”, sem destino e sem amparo, sempre esteve a caminho. No ponto de letra.
Na última lição do seminário da Identificação, Lacan arremata, pelo menos até ali, a construção teórica em torno da topologia do objeto a (objeto da castração) e principalmente em seu matema do fantasma $˂˃a. Disse ele, naquele dia: “Pequeno a é o ser, na medida em que ele é essencialmente faltante no texto do mundo”. Aqui ecoa novamente a frase I am what I am, em seu movimento tautológico que circunscreve um buraco. E é aí nesse oco que a besta capitalista se locupleta inexorável, infinita e insaciavelmente. Continua Lacan: “É do lado do Outro que o pequeno a aparece, não tanto como falta, mas como a ser”. Fantástico oxímoro: …a ser… a vacuidade do ser, ou a falta-a-ser, como sabemos.
Ainda naquela lição, de 27 de junho de 1962, Lacan nos lembra dos espelhos obscuros, nos quais é a própria imagem que faz obstáculo à representação. Nesse momento ele invoca aquele a quem considera “poeta de nossas Letras”, Maurice Blanchot. Curiosa imagem, essa de Lacan, já que não se tem notícias de que Blanchot tenha escrito versos. A menos que Lacan se refira aqui a alguém que trabalhe com a escrita em ponto de letra. Pois bem, Lacan convoca, ali, Blanchot, que certamente toca o coração da poesia, “na via da realização do fantasma”, para ler um longo trecho de seu (de Blanchot) primeiro livro (1941): Thomas L’Obscur. Esse trecho é sobre a relação de Thomas, leitor, com as palavras de um escrito que saem da página de um livro aberto e vêm em sua direção. Em uma espiral ascendente de tensão, leitor e escrita se atraem e se repelem:
Ele se via com prazer, nesse olho que o via.
Foi nesse estado que ele sentiu-se mordido ou sacudido, não podia sabê-lo, pelo que parecia ser uma palavra, mas que assemelhava-se mais a um rato gigantesco, de olhos penetrantes, de dentes puros, e que era uma besta toda-poderosa. Vendo-a a algumas polegadas de seu rosto, ele não pôde escapar ao desejo de devorá-la, de trazê-la para a intimidade mais profunda consigo mesmo. Ele se atirou sobre ela e, enterrando as unhas nas entranhas, procurava torná-la sua. O fim da noite veio. A luz que brilhava através das persianas se apagou. Mas a luta contra a besta medonha, que se revelara afinal de uma dignidade, de uma magnificência incomparáveis, durou um tempo que não se pode medir. Essa luta era horrível para o ser deitado no chão que rangia os dentes, arranhava-se o rosto, arrancava-se os olhos para deixar entrar a besta, e que teria se assemelhado a um demente, se não tivesse se assemelhado a um homem. (vale a pena ler todo este trecho) [LACAN, A identificação. Seminário 1961-1962. Centro de Estudos Freudianos do Recife, outubro de 2003. pp 432-3. Grifos meus.]
“Parlêtre” (LACAN); “Escrita, a Besta Inominável” (BLANCHOT/CHAR); “(…) um animal chamado escrita (…)” (LLANSOL. Causa Amante. Lisboa: Relógio D’Água, 1996, p. 160).
E Samson fecha seu texto como nós, nesta resenha, após ter feito menção ao objeto a: “É por isso que desse vazio, desse oco, inscrito por um pauzinho de identificação, pode às vezes surgir uma voz, aquela por exemplo de Sarastro ou a do coro, desenhada por Mozart em A flauta mágica, e fazer ressoar os nomes de Ísis e de Osíris”.
“Porque o poeta se produz por ser… (permitam-me traduzir aquele que o demonstra, no caso meu amigo Jakobson)… produz-se por ser devorado pelos versos/vermes (vers) que encontram entre si o seu arranjo, sem se incomodar, isso é patente, se o poeta sabe disso ou não.” [LACAN. “Radiofonia”. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 460]
Mauro Cordeiro Andrade