Eventos . JORNADA ALEPH

BH, 28/09/2020

Prezado colega,

Em o seminário ‘A Identificação’ (1961-1962), na sequência de suas elaborações entre a Psicanálise e a Lógica, Lacan insere os estudos da Topologia em seu ensino, definitivamente, embora já se referisse a essa área da matemática desde 1953. Ao apresentar o Toro, ele diz à sua audiência: “A partir de hoje, vocês estão vendo, abro deliberadamente a era dos pressentimentos.”. Após décadas, a Topologia – das superfícies e dos nós – continua sendo um tema difícil para os psicanalistas, porém, em contrapartida, uma fonte de descobertas para a escuta.

O artigo “Identificação e Corte – Tempos na experiência do desejo” * é um convite ao ‘mergulho’ e à ‘imersão’ nas superfícies topológicas. As autoras Margarida Maria C. Chaves e Maria Regina F. Cardoso, psicanalistas, membros do Aleph – Escola de Psicanálise, para além do exercício da clínica, fazem um importante trabalho de transmissão na escola, com destaque em seus estudos da ‘Topologia e Psicanálise’. Com rigor e de forma agradável,elas encorajam e introduzem o leitor no mundo de circunvoluções, interversões, superfícies, cortes e ‘não-orientabilidade’.

Desde o título, o leitor é instigado a percorrer as páginas que auxiliam a leitura e dão suporte aos estudos do Seminário de 1961-1962. Ele anuncia, desta forma, a conjugação identificação e corte, pontos importantes para o entendimento dos estudos da Topologia de superfícies –especificamente, o Toro e o Cross-cap- em sua interseção com a Psicanálise. Para além dos dois conceitos ‘Identificação’ e ‘Corte’, o tempo, a experiência e desejo, fundamentais à constituição do sujeito, sugerem, de forma subjacente, o trabalho ao qual o psicanalista é convocado.

De início, lê-se a proposta do escrito: o “vínculo do significante à estrutura subjetiva através das superfícies topológicas, …” (p.23). A afirmação de Lacan – “A topologia é estrutura” – é revisitada, descrita, demonstrada e ‘mostrada’ ao longo das elaborações das autoras.

Ao introduzir a topologia do Toro, as autoras afirmam que sua “inflexão constituinte […] permite seguir a lei à qual o sujeito está submetido ao processo de identificação”. (p.23). Para prosseguir com esse conceito, o leitor encontra a apresentação da estrutura da superfície tórica “própria à mostração da relação do sujeito ao Outro”, na qual é possível que sejam traçados círculos que “não são redutíveis a um ponto, uma vez que contornam um vazio”, o que o diferencia da esfera.

Nas páginas 24 e 25, com a apresentação de esquemas e desenhos, encontram-se definidos e trabalhados os três círculos inscritos nessa superfície, relacionados aos três modos de falta relativos à Identificação:

– Círculo da demanda: “…ao redor da espessura do toro. […] Não se trata de uma volta que se fecha sobre si própria, mas, sim, uma sucessão de voltas, descrevendo uma espiral” Essas voltas escrevem a demanda, a repetição significante, que se dá à medida que o sujeito trabalha no vazio. A frustração está aí inscrita.

– Círculo do desejo: esse círculo, “mais precisamente do objeto metonímico do desejo, como falta, …”, não contado e fora da linguagem, refere-se à volta a mais que se obtém pelo circuito em espiral do círculo anterior. “Essa volta a mais que se conta a menos, o que constitui o sujeito ao nível da privação…”

– Círculo estrutural do sujeito: “faz-se a volta do círculo cheio e, ao mesmo tempo, a do círculo vazio […] Esse círculo nos permite simbolizar a demanda enquanto sobrejacente ao desejo: D/d.”. (Leia-se, D = Demanda, d = desejo). Nesse ponto do texto, a afirmação enigmática “ainda que o sujeito tenha dado uma só volta, ele deu duas” é explicitada, esclarecendo-se, desta forma, essa difícil formalização de Lacan.

A demanda e o desejo, frustração e privação se mostram conjugados. Esse 3º círculo, como seu próprio nome indica, escreve a matriz estruturante do sujeito, um traçado-marca que, duplicado, escreve o ‘oito-interior’, o circuito moebiano. Esse traçado indica a continuidade do dentro e fora, interior e exterior em um só caminho, revelado pelo próprio corte.

A seguir, as autoras trabalham outra formalização importante do seminário, qual seja, o conceito de ‘auto-diferença’, mostrado com um desenho a ser desvendado pela seguinte afirmação: “É no nível da própria demanda que se sugere, pela reduplicação do objeto do desejo sobre si próprio, a dimensão do buraco onde o objeto se constitui, ou seja o nada desse objeto.” (p. 26). Esse corte de dupla volta, ainda na frustração, alude, portanto, à castração.

Na sequência, o texto desenvolve-se com o conceito de corte, sua relação com o significante e o advento do sujeito. (p. 26).

Das dependências do sujeito no campo do Outro, o leitor é convidado a estudar um novo movimento: o ‘enlaçamento tórico’. Devido à estrutura que conjuga dois buracos, os dois toros -sujeito e Outro- podem se enlaçar. “Nesse “intercâmbio ingênuo”, nessa “interversão” entre desejo e demanda, […] há uma relação de engodo.” (p.27). É interessante acompanhar, nas páginas seguintes, a formalização sobre a constituição subjetiva e a estruturação do fantasma. Ainda, sobre os dois toros enodados, faz-se a demonstração do 3o círculo que, ao se reduplicar, indica a ‘dissimetria estrutural’: “fica evidenciado a dissimetria tanto em relação ao sujeito e o Outro quanto à demanda e o desejo.” (p.30).

Após o mergulho no orientável que guarda uma ‘não-orientabilidade’ no corte em ‘oito-interior’, o leitor é convocado a fazer uma ‘imersão’ e seguir “o tensionamento entre o toro e cross-cap” (p.30-32). Com fôlego, em seus estudos e no escrito, as autoras afirmam que essa última superfície propicia “um suporte estruturante a essa relação do sujeito ao objeto do desejo.”. Essa superfície é a estrutura do fantasma, da castração.

No artigo, tem-se a oportunidade de apreender e ler melhor o Cross-cap, superfície não-orientável, a partir de esquema e de desenhos. Nesse trecho, são apresentados termos-conceitos lacanianos de ponto-buraco, localização do phallus, conjugação do esférico e o asférico, o objeto a e o $, respectivamente, numa mesma superfície.

Mais ao final do texto, as autoras citam uma passagem do Seminário ‘A Identificação’, que se refere à normalidade no psicótico, no perverso e no neurótico, indicação fundamental para a escuta clínica.

“Um percurso foi feito. Vimos que o corte, na estrutura, é o lugar da falta, ou seja, no que engendra a superfície, a estrutura é reduzida ao puro corte” (p.32).

A escrita desse artigo leva o leitor aos “tempos da experiência do desejo” que “não cessam de não re-velar”, como as próprias autoras propõem.

Vale lembrar, ainda, que esse escrito abre a possibilidade de se ler a conjugação e distinção dos três registros ‘Real, Simbólico e Imaginário’ -não ainda como três aros separados-, mas indicados e mostrados nas superfícies e cortes.

O escrito preciso e fino de Margarida e Maria Regina é uma preciosa referência para os psicanalistas interessados no enlaçamento teoria/práxis. Transmissão ímpar, enriquecedora para novas elaborações em torno do tema da jornada de 2020.

* In: Transfinitos, Identificação e Angústia, 2000 número 01- ano 2.