Fragmentos, memórias: homenagem a Célio Garcia
Fotografia: Antônio Carlos de Souza
Celio Garcia seria um dos que recusariam, no isolamento social, o isolamento político. Ele sustentou, desde sempre, um trabalho cuja marca era precisamente articular às práticas de grupo então nascentes, a prática política e era com esse olhar que ele assumia essa pesquisa capaz de intervenção em espaços tão distintos quanto o da mineração, da saúde pública, da universidade. Queria te-lo ouvido sobre Brumadinho, esse retrato que, como o de Drumond, dói. Certa vez, em meio a um trabalho, eu ainda muito jovem, ele me disse que éramos um pouco parecidos: andávamos sempre em direção ao abismo, mas sabíamos não cair nele… Tomara!
Foi ele quem trouxe aqui a psicanálise nova que retornava à radicalidade freudiana – Lacan – com todas as suas exigências lógico-matemáticas, os desdobramentos, os cortes que ela requer. Lapassade, Morin, Fedida, Foucault, Badiou e tantos mais, nos chegaram através do Célio. Ele frequentava (gostava desse significante, usava e abusava) a filosofia, a lingüística, a prática científica das ciências hard (também gostava do termo) como campos sempre atravessados pela política. E nos ensinou esse caminho, mas nos ensinou a ler sem ceder do lugar que prescinde do mestre e privilegia a apropriação do aprendiz. Foi meu orientador, sem nunca deixar de desorientar. Somos uma geração profundamente marcada: nossa história, nossa leitura do mundo contemporâneo, nossa política. Diria, brevemente, do encontro com o Célio: nem sempre foi fácil, mas foi sempre fecundo. Devemos muito a ele. Com saudade.
Leila Mariné
Celio Garcia, um psicanalista
Na Fafich seu nome e sua fama me alcançaram muito antes de conhecê-lo. A psicanálise havia entrado em meu radar de forma ainda nebulosa, era um zumzum, uma ideia extravagante e quase inacessível. Bom, naqueles anos 70, na Fafich tudo era um zumzum, tudo ebulição e desejo. A psicanálise fora quase banida, anos antes, do currículo da psicologia. Vivíamos os tempos da ditadura e a UFMG era um lugar de liberdade, uma bolha, uma redoma, mas libertária e efervescente. Estudante sem grana, passei a segui-lo em todo e qualquer lugar em que ele fosse falar, desde que fosse gratuito, como me obrigava meu orçamento minguado. Palestras, aulas, encontros, o que fosse. Lá estava eu e meu olhar um pouco atônito, um pouco curioso, muito entusiasmado. Ele fala de psicanálise! E sua palavra era sempre diferente. Aquele homem falava de modo estranho, nunca um lugar comum, sua fala deslocava o pensamento e exigia pensar sobre. Comecei a ler aquelas coisas difíceis, a bibliografia era rara, quando se achava na biblioteca era quase sempre em francês (e eu que passara minha adolescência estudando inglês, como quase todos adolescentes de classe média na América Latina! Afinal era o tempo do avanço da influência americana nesse quintal). Mas, ele citava os franceses, trazia os franceses para palestras e cursos. Mas, além de citar os franceses, aquele homem diferente ainda discutia a tradução de Freud, direto do alemão. Ele chamava nossa atenção para a tradução do alemão! Definitivamente ele deslocava a gente. Além do mais ele era o mentor dos professores mais queridos, os mais especiais como a Leilinha e o Romu. Nesta brevíssima homenagem, é necessário salientar duas coisas. Célio Garcia era o cara que tentava falar da psicanálise, divulgar, discutir, transmitir, sempre de modo analítico. Certa vez, um famoso jornalista da cidade, que o tinha como amigo, me perguntou do que afinal eu gostava nele se não se entendia uma palavra do que ele dizia. E, segundo mas não menos importante, ele tinha uma generosidade intelectual ímpar. Traduzia textos que espalhava e, sobretudo, colocava sua importante biblioteca à disposição. Emprestava textos e livros para leitura lá, na casa dele, ou para copiar. Então, se por um lado a fala era hermética, havia uma generosidade intelectual legítima, quer dizer, ele não facilitava nada, mas facultava os meios. Sua casa funcionou anos e anos como um centro de discussão de ideias, de encontros importantes. “Universidade livre do Célio Garcia”, a gente brincava. Reunia muitos, trazia de Paris, além dos convidados, livros, ideias, a energia nova dos acontecimentos, Célio sabia o que se passava no movimento psicanalítico e no mundo, a política sempre o interessou, e ia disseminando ideias e promovendo encontros. O fato de trazê-las direto da fonte foi outro diferencial, não passava por Rio e São Paulo assim como era comum a quase todos os outros saberes que chegavam naquela Belo Horizonte provinciana de então. Se, hoje, Minas e BH guardam um lugar de destaque na produção do saber psicanalítico do país, muito se deve a ele. Eu devo. Aprendi, fui mordida pela peste muito por aquilo que, lá nos começos, ele falava e fazia ecoar nas entrelinhas. Aquela “incompreensibilidade” da qual se queixara o jornalista era seu modo de lidar com a causa, de falar fazendo reinar a causa. Sofisticado, sim. E ainda é preciso lembrar que Celio valorizava o Serviço Público e a Universidade, com os quais sempre trabalhou, sempre levando esse corte transversal que o discurso analítico promove. A psicanálise está de luto.
Elisa Arreguy
Conheci o Célio Garcia em um curso de extensão de psicologia jurídica, na década de 90, onde ele propunha um trabalho de interface entre psicanálise e direito. Seu pensamento disparou o meu.
Naquela época, eu iniciava o trabalho com os jovens infratores e pude, a partir desse encontro, construir uma perspectiva absolutamente nova para pensar uma política de atendimento a esses jovens.
Do curso, partimos para os encontros sistemáticos em seu consultório. Sua casa nos acolhia. A cada reunião, Célio nos apresentava suas elaborações acerca do que havia escutado anteriormente e, assim, entusiasmados, tecíamos uma política.
Impressionava-me o modo como manejava a transferência com cada um que ali estava. Corajoso, destituía posições e instituía saberes. Ele não cedia aos impasses apresentados pelas instituições. Havia sempre um ponto a ser subvertido, que abria uma possibilidade de intervenção.
Foi ele quem primeiro me transmitiu, de uma forma vivaz, a implicação da psicanálise na política.
As marcas indeléveis desse encontro seguiram produzindo efeitos na cidade, na política e na vida de muitos. Célio faz falta.
Mônica Brandão
Célio entrou na minha vida depois de já “ter feito muitas cabeças”, como se dizia à época, na Fafich, afinal eu era só da Pedagogia. Conheci-o na casa de amigos em Paris, quando fazia o pós doutorado. Emprestou-me sua escuta; emprestei-lhe minha alegria. De alguma maneira eu sabia que, intrincadamente havia uma relação entre educação e psicanálise, entre história e psicanálise. Esse saber não sabido vinha de alguns anos de análise. Passeávamos, divertíamos, éramos confidentes, ríamos, e ele ia me mostrando aquela cidade, que fizera sua, e seus meandros intelectuais . A elaboração do livro A Psicanálise escuta a educação foi um acontecimento, sua participação o validou. Enquanto esteve ao meu lado sempre esteve. Eu e Rodrigo sentimos sua falta há muito tempo.
Eliane Marta
CÉLIO GARCIA
Tive muito pouco contato com Célio Garcia.
Mas o suficiente para ficar com duas fortes impressões.
Sua antena hiperparabólica para o mundo, que captava, quase em tempo real – e isso em uma época em que Internet e telefones celulares estavam apenas começando a ser utilizados -, o estado de pesquisas, debates, publicações e acontecimentos nos mais variados campos de intersecção entre a filosofia, as ciências exatas e as humanas e os pensamentos de Freud e de Lacan.
E sua generosidade e acessibidade na transmissão de tudo isso para quem estava se aproximando da psicanálise.
Sóbrio mas apaixonado. Sem qualquer impostura.
Fica, agora, uma grata lembrança e uma ótima saudade.
Mauro Cordeiro Andrade