A Articulação e a não regulamentação
A Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras é um movimento formado por escolas e instituições que representam um amplo espectro do campo psicanalítico e que, desde 2000, promove reuniões semestrais de seus representantes, visando manter a Psicanálise fora de uma regulamentação pelo Estado. Não é uma associação ou mesmo um grupo, mas um movimento que se organiza a cada encontro e que não constitui nenhuma sociedade hegemônica. Durante esse tempo, temos acompanhado a insistência de parlamentares em regulamentar a Psicanálise. O Aleph-Escola de Psicanálise participa desse movimento desde seu início, pois o considera uma política necessária para uma formação permanente e independente.
Criada por Sigmund Freud, a Psicanálise é um método de investigação do Inconsciente. Freud constatou a existência de forças psíquicas e o modo como somos afetados por elas, mesmo não tendo delas consciência. Usando a “associação livre de ideias” e a “atenção flutuante”, formou um corpo teórico-clínico que dialoga com outras áreas, sem a elas submeter-se, o que mantém a Psicanálise distinta em seus princípios e técnicas. Em “Sobre ensino da psicanálise nas universidades”,[1]Freud aborda a formação de um analista: ela deve ser sustentada a partir de um tripé constituído por ensino teórico, supervisão e análise pessoal.
Para manter a ética que nosso saber e nossa prática exigem,esse campo complexo impõe, àquele que pretende se ocupar desse ofício, uma formação específica, singular e única. São as escolas e as instituições próprias da Psicanálise que cuidam dessa transmissão e que são responsáveis em promover a formação permanente de analistas qualificados para sua prática. A Psicanálise faz operar o inconsciente mediante a palavra. Esse manejo não é um saber teórico desengajado da sua prática. Daí o valor e a especificidade do tripé: a formação complementada por uma prática clínica supervisionada e o conhecimento teórico fazem valer a ideia de que o psicanalista se forma a partir de sua própria experiência de analisando. Essa formação não se ajusta aos modelos de profissionalização garantidos por certificação ou diploma, expedidos por instituições de ensino ou órgãos reguladores públicos. Tornamo-nos analistas a partir da própria experiência e do desejo daí advindo. É impossível que um sujeito obtenha a resposta sobre a causa de seu desejo a partir de uma diplomação, de um curso ou de qualquer espécie de titulação. A questão da regulamentação toca a experiência analítica, uma experiência de saber com o inconsciente, e esse saber não avança sem o atravessamento de resistências. Justamente essas são as condições éticas que impedem que a Psicanálise seja regulamentada por uma lei externa a si mesma, uma lei jurídica, de Estado.
A Psicanálise não é regulamentada como profissão no Brasil, e os psicanalistas não reclamam nenhuma regulamentação do Estado. Uma tentativa vinda de fora do campo psicanalítico e que deu origem a esse movimento aconteceu no ano 2000, quando o deputado Eber Silva, apresentou uma lei no Congresso para transformar a Psicanálise numa profissão. Em 2003, houve nova tentativa de projeto de lei, apresentado dessa vez pelo deputado Simão Sessim, que também pode ser barrada pela ação conjunta dos Conselhos Federais de Psicologia, de Medicina e do movimento da Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras. Neste ano de 2017, novo projeto de lei foi inscrito no Senado,visando, novamente, a uma regulamentação do exercício de algumas práticas – dentre elas, as psicoterápicas e psicanalíticas –, agora do senador Telmário Mota, que objetiva regulamentar “a profissão de Terapeuta Naturista, nas modalidades medicina oriental, terapia ayurvédica, outras terapias naturais, e terapias psicanalíticas e psicopedagógicas”.[2] Nada temos a dizer sobre a regulamentação de outras modalidades terapêuticas, mas somos contra agrupar a Psicanálise a elas.
Sabemos que novas tentativas de regulamentação da Psicanálise, certamente, advirão tanto da cultura quanto de alguns psicanalistas e que essas tentativas são marcadas por grandes questões políticas e de poder. O enlace da teoria e da práxis da Psicanálise nos permite afirmar que as formações do inconsciente são tentativas de solução construídas pelo aparelho psíquico, aparelho de linguagem, para que cada sujeito dê conta do real que o acossa. A formação do psicanalista, baseada no tripé mencionado acima, é singular e única, e, portanto, seguiremos com cada analista, um a um, em nossa escola, para fazer frente a todas as tentativas da regulamentação externas ao campo da Psicanálise.
Gêisa de Carvalho Silva Ferreira
Setembro de 2017
[1]FREUD, S. “Sobre ensino da psicanálise nas universidades” (1919[1918]). In: ______. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago, 1996. p.215-217. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 17).
[2]Projeto de Lei do Senado n° 174/2017